quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Muito trabalho pela frente

O XIX Encontro do Foro de São Paulo ocorre num cenário marcado pela combinação entre a crise internacional, a contraofensiva da direita e o esgotamento do “padrão" que caracterizou a primeira etapa do ciclo progressista e de esquerda, das eleições de Chávez e Lula (1998-2002) à eclosão da crise internacional e à posse de Obama (2008) - See more at: http://www.teoriaedebate.org.br/materias/internacional/muito-trabalho-pela-frente?page=full#sthash.QwOZSZgl.dpu

O XIX Encontro do Foro de São Paulo ocorre num cenário marcado pela combinação entre a crise internacional, a contraofensiva da direita e o esgotamento do “padrão" que caracterizou a primeira etapa do ciclo progressista e de esquerda, das eleições de Chávez e Lula (1998-2002) à eclosão da crise internacional e à posse de Obama (2008) 


Entre os dias 29 de julho e 4 de agosto de 2013, a capital paulistana recebeu o XIX Encontro do Foro de São Paulo, para debater como aprofundar as mudanças e como acelerar a integração na região latino-americana e caribenha. Antes, o Brasil já recebera o Foro em três ocasiões: 1990, 1997 e 2005.

O XIX Encontro foi organizado por partidos brasileiros que integram o Foro de São Paulo: o Partido dos Trabalhadores, o PCdoB, o PSB, o PDT, o PPL e o PCB.

Este foi o primeiro realizado depois da morte do presidente venezuelano Hugo Chávez e da eleição de seu sucessor, Nicolas Maduro. Dois episódios que deixaram claro, para os que resistiam a perceber e reconhecer, que estamos em uma nova etapa política na região, marcada principalmente pela contraofensiva da direita local, apoiada por seus aliados nos Estados Unidos e na Europa.

Para derrotar essa contraofensiva da direita, não bastam medidas táticas: é necessário, também, um salto de qualidade no processo de mudanças em cada país e no próprio processo de integração regional.

Isso se faz preciso e urgente porque, além da contraofensiva, vivemos o esgotamento do "padrão" que caracterizou a primeira etapa do ciclo progressista e de esquerda, que se estendeu das eleições de Chávez e Lula (1998-2002) à eclosão da crise internacional e à posse de Obama (2008).

A partir de então, entramos em outra etapa, na qual estamos hoje, marcada exatamente pela combinação entre a crise internacional, a contraofensiva da direita e o esgotamento daquele “padrão", que basicamente consiste em redirecionar também para os setores populares a renda e a riqueza geradas em nossas sociedades.

Esse redirecionamento foi possível fazer, por algum tempo e com algum nível de êxito, como demonstra a comparação entre os indicadores dessa etapa vis-à-vis o período neoliberal antecedente, em qualquer dos países governados pelas forças progressistas e de esquerda.

Ocorre que a organização política, social e econômica capitalista hegemônica em nossa região não permite – especialmente num contexto de crise internacional – a ampliação continuada da igualdade, da democracia, da soberania e da integração regional.

É por isso que, à medida que o tempo passa, tende a diminuir o ritmo das mudanças, reafirmando-se as determinantes do status quo: a dependência, a democracia restrita e a desigualdade. A crise internacional não causou, mas certamente acelerou essa tendência.

É também por isso que devemos falar da necessidade urgente de realizar reformas estruturais em nossas sociedades, que nos permitam ampliar qualitativa e rapidamente a produtividade social, o bem-estar, a democracia política e a integração regional. E a “sustentabilidade” dessas reformas estruturais depende, em boa medida, da integração regional.

O XIX Encontro ocorreu logo em seguida à visita do papa Francisco ao Brasil. Os governantes da região comemoraram um papa de nacionalidade argentina. E setores da esquerda regional chegam a alimentar expectativas positivas, o que é compreensível se lembrarmos do pontífice anterior.

Mas há, de outro lado, setores muito preocupados, por três motivos: primeiro, devido a versões acerca do que ocorreu na época da ditadura militar argentina; segundo, devido ao papel jogado por outro papa no combate ao socialismo, tal como existia no Leste Europeu; terceiro, devido à crescente influência dos conservadores no interior da igreja católica. Reforçando esses motivos, vale lembrar o papel da democracia cristã no pós-Segunda Guerra, para neutralizar e combater a esquerda socialdemocrata e comunista em vários países europeus.

Durante o XIX Encontro, também foi muito discutido o processo de mobilização social ocorrido no Brasil no mês de junho, seus impactos presentes e futuros. Havia uma grande curiosidade a respeito, especialmente por parte daqueles que ainda analisam a política regional em termos de "duas esquerdas".

Vale dizer que um dos ensinamentos que se pode extrair das mobilizações de junho é que a direita brasileira, como a venezuelana, disputa a mídia, as urnas e agora também as ruas conosco. E que as esquerdas, apesar das diferenças existentes entre os vários países da região, enfrentam alguns dilemas muito semelhantes.

Sobre a integração regional, ficou claro mais uma vez tratar-se de um processo em disputa. Primeiro, contra o imperialismo, que deseja uma integração subalterna às metrópoles, como no projeto da Alca. Segundo, contra a grande burguesia, que deseja uma integração focada nos mercados e no lucro de curto prazo, o que aprofundaria as disparidades regionais e sociais, que por sua vez acabariam nos levando a uma integração subalterna aos gringos. Terceiro, existe ainda a disputa, no campo progressista e de esquerda, entre diferentes ritmos e vias de desenvolvimento e integração. Um de nossos desafios é, precisamente, evitar que essas diferenças se convertam em antagonismos – o que até agora temos conseguido.

A integração é, portanto, um processo “a quente”, no curso do qual a esquerda precisa operar, simultaneamente, no plano político, econômico e cultural. Para isso, os governos são fundamentais mas insuficientes. Os partidos, assim como os movimentos sociais e o mundo da cultura, são essenciais.

Outro dos desafios da integração, para além daqueles provocados pelo imperialismo estadunidense e europeu, pelos governos de direita e pelas burguesias locais, é a relação com a China, especialmente neste momento de inflexão em direção ao seu mercado interno.

Essa inflexão pode ter vários efeitos colaterais, entre os quais nos fazer voltar ao "estado normal" de economias dependentes, vítimas de desigualdade crescente nos termos de troca entre produtos de baixo e de alto valor agregado. Risco ao qual devemos responder, não reforçando o reclamo anti-China estimulado pelas “viúvas” dos EUA, mas optando para valer por um ciclo de desenvolvimento econômico regional, impulsionado pelo Estado e baseado na ampliação de infraestruturas, políticas universais e capacidade de consumo – caminho para o que já foi dito antes: a ampliação qualitativa, rápida e “sustentável” da produtividade social, do bem-estar, da democracia política e da integração regional.

Observando no conjunto a situação, constata-se um acirramento da luta de classes na região, um acirramento no conflito entre alguns países da região, bem como um acirramento de nossa relação com as potências imperialistas.

O que foi descrito até agora tem como pano de fundo o deslocamento do centro geopolítico do mundo, do Ocidente em direção ao Oriente, o declínio da hegemonia dos Estados Unidos e a crise internacional do capitalismo.

Trata-se de processos em curso, de desfecho incerto e passíveis de reversão em favor das classes sociais e dos Estados que hegemonizaram o mundo no período neoliberal.

Independentemente do desfecho, as três variáveis citadas criam um ambiente de instabilidade e crises – sociais, políticas e militares. O que conduz à formação de blocos regionais, inclusive enquanto instrumentos de proteção.

Esse é, precisamente, o divisor de águas no continente americano: o conflito entre dois grandes projetos de integração regional. De um lado o projeto de integração subordinada aos Estados Unidos, simbolizado pela Área de Livre Comércio das Américas (Alca), de outro o projeto de integração autônoma, simbolizado pela Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

O projeto de integração autônomo não é, em si, socialista. Mas a integração é uma condição fundamental para o sucesso econômico e político de uma transição socialista. Permite limitar as ações que o imperialismo e as classes dominantes de cada país promovem, de maneira permanente, contra a esquerda latino-americana.

A integração, por outro lado, cria a “economia de escala” e a “sinergia” indispensáveis para superar as limitações materiais, produtivas, econômicas, que dificultam a transição socialista em cada país da região.

Desde 1998, as forças favoráveis a uma integração autônoma conquistaram eleições em importantes países da região. Mas a partir de 2008, como já dissemos, começou uma contraofensiva das forças favoráveis à integração subordinada aos Estados Unidos. Hoje vivemos uma situação de “equilíbrio relativo” entre os dois projetos de integração.

Politicamente, uma situação de equilíbrio relativo pode ser favorável às forças da esquerda. Mas, historicamente, tende a favorecer as forças que representam o status quo, pois o equilíbrio significa a continuidade da ordem hegemônica, que em nosso caso ainda é capitalista, dependente e neoliberal. Nesse sentido, é fundamental buscar caminhos para seguir avançando.

É para isso que apontam as resoluções do XIX Encontro, quando falam em aprofundar as mudanças e acelerar a integração; ou quando falamos em buscar vitórias no ciclo eleitoral que começa em novembro de 2013 (Chile e Honduras) e prossegue até dezembro de 2014 (Bolívia); ou, ainda, quando falamos de fortalecer as lutas sociais, os partidos de esquerda e os governos progressistas da região.

Entretanto, para seguir avançando há que derrotar obstáculos poderosos. Vários deles foram objeto de discussão e deliberação pelo XIX Encontro, cujas resoluções, Declaração Final e Documento-Base devem ser estudados com atenção.

Mas há um obstáculo que não foi adequadamente debatido, a saber, nosso déficit teórico em pelo menos três grandes temas: o balanço das tentativas de construção do socialismo no século 20, a análise do capitalismo no século 21 e a estratégia socialista, na América Latina de hoje.

Quando falamos em déficit teórico nos referimos simultaneamente à necessidade de superar interpretações equivocadas e à de construir interpretações novas, que sirvam como núcleo central de uma cultura socialista de massas para este século 21.

O imaginário da esquerda latino-americana é ainda fortemente influenciado por paradigmas que certamente contribuíram muito para que chegássemos até aqui, mas ao mesmo tempo criam algumas dificuldades quando se trata de enfrentar os desafios presentes e futuros.

Ainda é muito forte, entre nós, a influência de paradigmas oriundos do idealismo religioso, seja na versão cristã, seja na versão “pachamâmica”. Influências que levam muitos a confundir marxismo com “machismo”, como se a certamente indispensável dose de “sacrifício” e “valentia” fosse suficiente para superar qualquer obstáculo.

Outras fortes influências são o movimentismo e o paradigma revolucionário representado pela heroica Cuba de 1953-1959, em boa medida representada na figura do Che. E há ainda uma fortíssima, tanto do nacional-desenvolvimentismo (base para a defesa de “alianças estratégicas” com setores da burguesia) quanto do socialismo de Estado (fonte de muitas das dificuldades para entender o papel do mercado na transição socialista).

A formação de uma cultura socialista de massas, bem como a construção de um programa e de uma estratégia adequados ao período histórico que vivemos, exigirá superar (no sentido dialético do termo, o que implica também preservar num patamar distinto) essas influências.

Nessa tarefa, será muito útil estudar duas experiências históricas e o debate travado a partir delas: o cercano Chile da Unidade Popular (1970-1973) e a lejana China das reformas (1978-2013).

Afinal, na América Latina e Caribe de hoje vivemos, no fundamental, experiências nas quais não se tomou o poder revolucionariamente; onde se está tentando construir um novo poder por meio de uma complexa guerra de posições; onde é fundamental impulsionar o desenvolvimento produtivo; mas onde também é fundamental definir a natureza desse desenvolvimento e qual o papel que o capitalismo pode e deve jogar nele.

Especificamente no caso do Chile, o aniversário dos 40 anos do golpe de Estado será uma oportunidade ímpar para discutir os caminhos para a construção do “poder popular” e da “área de propriedade social”, propostas pela Unidade Popular, que constituem temas atuais para as esquerdas agrupadas no Foro de São Paulo.


Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do PT e secretário-executivo do Foro de São Paulo

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