quarta-feira, 19 de março de 2014

Saúde: Socialismo ou barbárie?

Com a adoção de um sistema econômico baseado nos planos quinquenais, Stalin na antiga União Soviética, tornava o desenvolvimento fabril soviete num sistema de exploração idêntico ao que já prevalecia no ocidente. Em tese, Trotsky alegava que não era abandono do socialismo mas sim um aparato estatal degenerado, usurpador e cheio de privilégios. Nada mais nada menos a revolução russa fora substituída por um regime onde trabalhadores eram explorados para o desenvolvimento do governo stalinista.

Os interesses econômicos representados pelos monopólios industriais e/ou pelo capitalismo de estado apresentados como transnacionais e acobertadas pela máquina estatal encontram-se, como um parasita, em busca da exploraçãoda humanidade.  A fim de maximizar seus lucros o grande capital arma seu circo onde melhor poderá obterseus lucros, independentemente das consequências derivadas da exploração das riquezas naturais e daapropriação indevida dos meios de produção através da exploração da mão de obra (mais-valia).

Hoje a lógica da estrutura imperialista do capitalismo se expande e internacionaliza-se atribuindo-lhes, através da grande mídia,como salvadores dos problemas econômicos do Estado. Chamei de circo no parágrafo anterior para alertar do sistema de leilão adotado pelas grandes corporações que trocam postos de trabalho subvalorizados por benéfices tributárias, que são alimentadas por renuncias fiscais gigantescas que deixam de fomentar políticas públicas necessárias as populações de baixa renda de todo mundo. A lei orçamentaria anual federal previa a renúncia de mais de 14 bilhões e meio de reais para o ano de 2013. Já para 2014 serão mais de 34 bilhões em desoneração em nosso país.

“A luta operária no plano econômico exprimiu-se sobretudo pelas reivindicações de salário, às quais o capitalismo opôs uma resistência encarniçada durante muito tempo. Tendo perdido a batalha nesse plano, ele acabou por adaptar-se a uma economia cujo fato dominante, do ponto de vista da procura, é o acréscimo regular da massa dos salários tornada base de um mercado constantemente ampliado de bens de consumo. Esse tipo de economia em expansão em que vivemos é, no essencial, produto da pressão incessante exercida pela classe operária sobre os salários – e seus problemas principais resultam desse fato… Assim (e também em função de outros fatores) depois de ter resistido muito tempo à ideia da intromissão do Estado nos negócios econômicos (considerada como “revolucionária” e “socialista”) o capitalismo chega finalmente a adotá-la, e a desviar em seu proveito a pressão operária contra as consequências do funcionamento espontâneo da economia, para instaurar, através do Estado, um controle da economia e da sociedade, servindo em fim de contas seus interesses” (Paul Cardan,Socialisme et Barbarie, pág. 93.)

Poderíamos aqui definir a partir dos valores elencados um quantitativo de equipamentos públicos de saúde que poderiam ser construídos com a utilização destes recursos abdicados apenas pelo governo federal. Se incluirmos a desoneração do IPI desde 2009, já incluindo a estimativa de 2014, provocou uma perda de R$ 23,5 bilhões a Estados e municípios.Acontece que o cerne do problema não está na falta de estrutura física, mas sim, na falta de profissionais capacitados a ocuparem vagas necessárias a formação das equipes tanto da atenção básica quanto dos serviços especializados como hospitais, clínicas e centrais de diagnósticos.

Bruno Dominguez em Quando o público financia o privado afirma que em 2011 a desoneração alcançou R$ 15,8 bilhões somente no setor saúde a partir das desonerações do Imposto de Renda de Pessoa Física, do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, da indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos. Os gastos com planos de saúde foram os que mais pesaram: entre 2003 e 2011, respondiam por 40% ou mais do gasto tributário em saúde; em 2011, atingiram quase 50%, envolvendo cerca de R$ 7,7 bilhões dos R$ 15,8 bilhões.

Sendo assim, o direito à saúde não pode ser considerado efetivamente um direito de todos e dever do Estado, em uma sociedade capitalista como a brasileira devido o enfraquecimento do conceito de cidadania, fundamento constitucional que em conjunto com a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho não dialogam com o conceito de mercado. Ao mesmo tempo deve-se levar em consideração a necessidade de se fomentar condições de fixação de trabalhadores a partir das condições necessárias a uma plena qualidade de vida, assim nos grandes centros, o mercado disponibiliza alternativas aos baixos salários com jornadas duplas nos serviços privados.

A mercantilização na saúde sempre esteve diretamente ligada com a formação culturaldo Brasil. Historicamente há uma priorizaçãoda saúde privada individual em detrimento da saúde pública voltada a proteção e promoção da saúde coletiva. Com a constituição de 88 surge um novo conceito desaúde. Um direito fundamental de interessesocial que exige atuação conjugada do Poder Público e da sociedade tanto para defendê-lo comopara implementá-lo. O usuário ainda não reconhece o direito à saúde como um direito social, mas sim uma forma de consumo que pode ser comprado.

O enfraquecimentodas políticas sociais promovidas pela implantação do neoliberalismo com seu modelo político-econômico-privatista, não só eliminou a possibilidade de se erguer um Estado Social como enfraqueceu o conceito de participação-cidadã, antes mesmo da consolidação no Estado brasileiro do sistema único de saúde – SUS que deveria garantir  saúde pública a todoscomo  um  direito,  inserindo apopulação  nos mecanismos de controle social com a finalidade de promover participação e revigorar os direitos sociais.

A falta da concepção do direito social e incompreensão do conceito de saúde pública tornou o acesso a uma política pública fundamental fora da perspectiva social como apenas um produto de mercado. Some-se a ausência de serviços de saúde, sob a égide docapital, os problemas sociais como a fome, as doenças, a desnutrição, o acesso à água potável, o desemprego, a violência e a pobreza extremaum prato cheio ao império do capital que deveriam ser combatidos como política de Estado e com viés inclusivo e não coercitivo.

O problema está na escolha entre o caminho e o atalho. O apetitevoraz das corporações é alimentado pelo Estado favorecendo a expansão imperialista através da abdicação do cumprimento dos seus deveres transferidos ao sistema privado ou serviços regulados pelo direito privado. O sistema econômico capitalista pretere os direitos sociais em prol dos direitos econômicos, ou seja, os direitos sociais serão sempre relegados a segundo plano.

A assimetria de poder criado entre o Estado regulador e as grandes corporações que controlam os serviços de saúdeextrapolam as transações privadas. As atividades da indústria farmacêutica e de equipamentos, a pesquisa, a prestação de serviços, formação de recursos humanose a grande mídia obscurecem a importância social da prevenção, promoção e atenção à saúde dentro da perspectiva de direito social e participação cidadã. Sendo assim a disputa entre a lucratividade imposta pela mercantilização da saúde e a busca pela melhoria dos condicionantes sociais de saúde são antagônicos ao aumento de cobertura de saúde a população.

Para superar estes obstáculos, é necessário expropriar os meios de produção privadosa fim de colocá-los a serviço da população. Basta lembrar que o parque hospitalar privadobrasileiro, foi constituído basicamente mediante o financiamento estatal a fundo perdido. Cabe ressaltar que a contratação de serviços privados de saúde só deveria ser feita de forma a complementar a rede pública no entanto ainda o SUS em regra geral é a garantia de custeio de boa parte dos serviços privados de saúde.

As formas de planejamentos, sem uma prática de contratação de serviços de saúde em nosso país baseada em critérios orientados pela demanda cria restrições e grandes dificuldades na gestão pública. Ao mesmo tempo a ausência de uma política nacional de gestão de pessoas baseadas numa padronização de ações, critérios técnicos e pisos salariais nacionais dificultam a atração de profissionais para as regiões mais distantes do país, deixando desprovidos de serviços importantes parcelas da população.

A Organização Mundial de Saúde – OMS informou que, no Brasil existem apenas 32 profissionais para cada dez mil habitantes, abaixo do número ideal para o acesso universal de cidadãos a serviços de saúde – que é de 34,5 profissionais por dez mil habitantes. No relatório desenvolvido pelo Ministério da Saúde – MS voltados para o enfrentamento da necessidade de prover e fixar profissionais de saúde de forma a favorecer, para toda a população, acesso com qualidade às ações de atenção à saúde soava uníssono a Instituição de Planos de Carreira, Cargos e Salários no âmbito do Sistema Único de Saúde- PCCS-SUS a fim de garantir a presença de profissionais nos mais distantes rincões deste país.

Gilberto Pucca em seu artigo Globalização e mercantilização revela que o SUS embora atenda 75% da população brasileira e ainda assim subsidie o setor privado tem disponíveis ao sistema público apenas o dobro de recursos que possuem as corporações médicas e metade dos médicos na rede pública. A rede privada diferentemente disponibiliza aproximadamente 350 mil leitos em 4300 hospitais com 120 mil médicos cadastradosatendem 41 milhões de pessoas movimentando quase R$ 92,7 bilhões por ano. No SUS são quase 6000 mil leitos em 7000 mil hospitais e apenas 70 mil médicos para o restante da população desprovida de planos de saúde privados ou seja, 75% dos brasileiros.

Esta abissal diferença de recursos existentes entre o sistema público e as organizações privadas e que estão dentro da lógica de mercado ainda incipientes na perspectiva do ataque neoliberal existente em prol do processo de globalização e centralização do mercado da saúde, encontram-se nas mãos das grandes corporações.

O SUS apesar de ser responsável por atender as demandas de ¾ da população brasileira dispõe de menos da metade dos recursos gastos com saúde privada. Com apenas 3,6% doProduto Interno Bruto (PIB) contra 4,9% dosistema privadofica praticamente impossível manter um sistema de cobertura universal e atendimento integral.  Entre os países com sistema público universala média de gastos públicos com saúde representam 70% da despesa total, variando de 67,5% na Austrália a 84,1% na Noruega. Sendo assim torna-se difícil manter um Sistema Único de Saúde onde o gasto privado é maior que o público.

Outra situação que dificulta as ações em saúde do ponto de vista orçamentaria tem sido a judicialização da saúde que em detrimento ou não da ineficiência do setor público permitiu oaumento no número de ações pleiteando tratamentos médicos com base no direito constitucional à saúde. O gasto do MS com medicamentos subiu mais de 5.000% saindo de aproximadamente R$ 5 milhões em 2005 para quase R$ 150 milhões. Esta posição do Judiciário brasileiro sem observar as características do sistema tem proporcionado grandes fissuras no direito à saúde do ponto de vista da saúde coletiva. O direito individual se sobrepondo ao coletivo.

Sem medidas radicais do ponto de vista do direito social, tenderemos a ser engolidos pelo mercado e sua necessidade de crescimento constante ou extinção.  A lei de responsabilidade fiscal tem determinado o fim das políticas de saúde, principalmente nos pequenos municípios sem grandes poderes de investimentos.

A busca pelo atalho tem ao contrário do esperado, auxiliado na extinção do direito à cidadania. Não se consegue a universalização do direito à saúde sendo regulado pelo direito privado como propõe alguns pensadores e gestores mais imediatistas. A terceirização das áreas meio tem recriado a classe inferior de trabalhador a partir da contratação de serviços pelo menor preço com mão-de-obra barata e não especializada. A criação de cartéis de profissionais como as cooperativas médicas vem estrangulando a capacidade de investimentos dos entes federados.

O sub financiamento é a ação derradeira da morte anunciada do SUS. Há tempo de inverter o processo de desconstrução do SUS e somente se resolverá com mais investimentos. Claro que este financiamento tem de ser diferente da proposta atual. A grande dificuldade dos municípios em tocar as políticas públicas de saúde advém da dificuldade de pagamento da folha de pessoal devido à imposição de limites para os gastos com pessoal da lei de responsabilidade fiscal.

A saída primeira para este impasse em relação ao regime prudencial imposto é a mudança na atual estrutura e na legislação de impostos, taxas e contribuições vigente no país, a tão esperada reforma tributária. Não pode o município ser o responsável por toda a execução da política de saúde se em termos de recursos é o que menos recebe de toda a arrecadação de tributos.

A tributação precisa ser distribuída de forma mais igualitária. Carlos Longo em Finanças Públicas mostra a evolução da distribuição dos tributos no país. Em 1964 ao governo federal cabia 39,6 % de toda carga tributária brasileira cabendo aos estados 48,5% e aos municípios 11,9% da arrecadação de tributos do Brasil. Já em 1984 o governo federal embolsava 49,3%, os estados diminuíram a participação para 35,2 % e aos municípios coube apenas 15,2% de todos os tributos arrecadados.

Sendo assim com a capacidade de investimentos diminuída ao longo dos anos e o aumento das responsabilidades a partir da constituição municipalista de 88 torna difícil a possibilidade dos municípios emfomentar os direitos mínimos a população. Gilson Carvalho em seus estudos relata que na década de 80 a União respondia por 75% do financiamento público em Saúde, os Estados por 18% e os Municípios, por 7%. Em 2012, responde apenas por 46%, os Estados aumentaram a participação para 26% e os Municípios, para 28%.

O subfinanciamentoe a precarização do trabalho no SUS via organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e fundações de apoio vem na prática fomentando a privatização. A entrega ao sistema privatista do “produto”saúde pelos entes federados com a desculpa que o Estado é mal gestor apenas acelera o que o estado neoliberal plantou na década de 90: A DERROCADA DO SUS!


Esta realidade dificílima enfrentada pelos municípios pode ainda piorar com a possibilidade de se retirar parte dos recursos públicos que seriam destinados para a saúde pública com finalidade de gerar um novo ciclo de investimentos em serviços privados a fundo perdido. As longas filas, falta de leitos, falta de medicamentos, ausência de profissionais, estrutura debilitada somente poderá ser resolvida quando deixarmos de consumir um produto e exigirmos um direito. Para isto se faz necessário por parte da sociedade organizada e principalmente por parte dos partidos de esquerda elevarmos o nível da discussão e a ordem de prioridade pois a população já elegeu sua prioridade. De que lado estamos?